domingo, 25 de maio de 2008

Eh, Marvada !



*uma "homenagem" pouco convencional...


"Co'a marvada pinga é que eu me atrapaio
Eu entro na venda e já dô meus taio
Pego no copo e dali num saio
Ali mesmo eu bebo, ali mesmo eu caio
Só pra carregá é queu dô trabaio, oi lá!"
(Ochelsis Laureano e Raul Torres)


Longe de querer fazer tipo, inicio dizendo que não tenho muita intimidade com tal personagem, embora algumas garrafas estejam sempre à mão, no armário da minha cozinha, entre livros de receita, pimentas, ervas para chá e temperos do dia-a-dia. É um lugar de honra, já que considero este um dos ambientes em que mais gosto de estar. Direi ainda que dos poucos amigos que nos visitam, quase todos confessam sua paixão, principalmente pelas mineiras, fabricadas em pequenos engenhos, de tiragem reduzida. Imagino que deve ter lá o seu charme saber que poucos provarão “aquele” néctar. Quando é presente então, o valor é inestimável. Com certeza alguns saem convictos de que participaram de algum ritual ancestral, tamanha a cerimônia.
Apesar da pouca familiaridade, me incluo no seu rol de admiradoras e reconheço que é mesmo uma celebridade. É internacional, tem fã-clube e prestígio. E nem faz tanto tempo era a marginalizada bebida de preto e pobre. Hoje freqüenta salões palacianos, tem exclusivos clubes de apreciadores, enfim, é cult admitir que se beba cachaça. Alguns ratificam: cachaça, pinga não! Ciosos de sua reputação de conhecedor da bebida.
Gosto das conversas, dos causos, das histórias em torno e sobre ela. São, quase sempre, divertidas e muito reveladoras. Se bobear, o efeito é maior que o soro da verdade...
Confesso que até gosto dela quando disfarçada de licor, de batida de côco geladíssima e de caipirinha absurdamente açucarada. Heresias dirão, mas fazer o quê? Pura só se for para desinfetar um corte, pois também não há como negar seu vasto uso farmacológico, imortalizado na voz do querido João Nogueira, na deliciosa “Boteco do Arlindo”. Engraçado como todos têm uma receitinha: espirrou uma com limão; dói a barriga, uma misturada; levou pancada, uma com barba-timão; e se dói o dente, se faz frio, se faz calor, pra criar coragem e por aí vai um sem fim do “serve para” em que a apreciada obra do acaso revela sua serventia.
Por fim, como se já fosse pouco o que representa , destaco aqui seu uso educativo, a despeito do que se publica na literatura médica. O causo é que certo doutor se empenhava em assustar seus pacientes apreciadores de aguardente, consumida por muitos naquela pequena cidade. Falava-lhes dos males , das seqüelas, dos dissabores mas reconhecia o pouco efeito que seus discursos causavam. Até que resolveu ser mais enfático fazendo uma demonstração no consultório: diante do paciente atento, pegou um ovo, quebrou-o em um copo e adicionou uma generosa dose da mardita ao mesmo.
- Veja como o senhor fica por dentro quando bebe cachaça...
O ovo começou a escurecer. Mais um tempinho e tudo estava completamente preto.
- Viu aí? Está convencido do que lhe falei?
- Sim, dotô. Depois dessa nunca mais como ovo!

EDNA LOPES
Publicado no Recanto das Letras em 10/08/2007
Código do texto: T601919

quarta-feira, 21 de maio de 2008

UMA LEMBRANÇA MUITO ESPECIAL*

foto da web

Era uma menina tagarela, inquiridora. Bochechas rosadas, riso largo, olhar curioso.
- Vó, estrela tem nome?
- Algumas têm. Aquela ali é a Papa-Ceia.
- E aquela lá?
-Não sei. E não aponte. Vai criar verruga.
Calava por alguns minutos, pensativa. Voltava ao bombardeio das inquirições, enlouquecendo a todos. Vez ou outra alguém dizia:
- Nossa! Deram água de chocalho a essa menina!
Morava na roça, sem vizinhança,num lugarejo igual a tantos no Nordeste. Além das irmãs, os bichos e as fruteiras eram suas companheiras de longas conversas.
Interessou-se a ouvir histórias e, consequentemente, por livros. Aos quatro anos não era permitido ir à escola com as irmãs mais velhas, rimas e primos embora insistisse diariamente:
- Deixa eu ir!
Não deixavam. No retorno das irmãs, mais tarde:
- Como é a escola? O que tem lá? O que vocês aprenderam? Me ensina...
- Chega! Deixa a gente sossegar!

Um dia descobriu ser possível decifrar aqueles desenhinhos engraçados. Descobriu que eles se transformavam em palavras.
- Vó, o que está escrito ali?
-Almanaque do Coração de Jesus.
- E aqui?
-Sagrada Família...
Seguia com intermináveis “e ali?” “o que é?” “como é?”, mudando de assunto quando percebia o enfado do interlocutor.
- Mãe, escreve meu nome aqui - apontava para um caderno - Escreve galinha também. E cachorro. E cavalo...
A mãe ficava um tempo escrevendo o nome das coisas que ela queria saber.
- Agora chega. Vá brincar. Quando tiver idade vai à escola com suas irmãs e vai aprender a ler. Tenha paciência.
- E por que não posso ir agora?
- Já disse. Você é muito criança.
A menina não se dava por vencida e ia brincar com os poucos livros que havia na casa. A avó, impressionada com seu empenho em aprender a ler, deu-lhe um velho almanaque. Antes, leu para a neta a estória “A menina e o leite”.
Passava horas rabiscando sem parar, falando consigo mesma. Dizia que estava lendo e escrevendo cartas. Dias depois que recebeu o presente da avó, gritou entusiasmada:
- Leiiiite! Leiiiiite!. Essa palavra é leite e eu já sei ler!
A partir de então ninguém teve mais sossego em casa. Lia tudo.
Gaguejava, soletrava, engolia parte das letras e todos os acentos, mas lia em voz alta para as visitas, para os pais, para as irmãs e primos e, principalmente, para a avó, que tinha uma paciência infinita com ela. Em pouco tempo leu tudo que havia na casa.E mais: os livros trazidos por suas irmãs e qualquer impresso que aparecesse. A partir de então, ler se transformou em seu passatempo favorito.
Um universo jamais visto ou sonhado de beleza saltaram das páginas para sua vida. Ao freqüentar a escola, descobriu a biblioteca,pobre de acervo, mas rica o suficiente para transformar o mundinho de menina do interior tomou dimensões inimaginadas.
O tempo passou, a menina virou mulher,conservando o olhar curioso, o riso largo e a mania de ler tudo que lhe caía nas mãos. Cumprindo uma profecia de sua avó, tornou-se professora.


* Memória de minhas primeiras leituras.
Publicado no livro "O Conto das Alagoas", lançado na III Bienal Alagoana do Livro", no dia 23 de outubro de 2007.

EDNA LOPES
Publicado no Recanto das Letras em 09/08/2007
Código do texto: T600437